quinta-feira, 22 de maio de 2014

O bolo

Antigamente ela, com as mãozinhas sapudas, rapava a tijela. A Mãe entregava-lhe uma grande taça de plástico - daquele bom, que não cheirava a loja do chinês - e o salazar de cabo de madeira e topo de plástico quadrado e era vê-la deliciada, toda lambuzada, nos banquinhos da cozinha, a rapar, a rapar, a rapar até já não sobrar nenhum risquinho da deliciosa massa do bolo.
Antes dela nascer, a Mãe já fazia o bolo e era o que ela mais gostava de fazer e de comer. O seu bolo preferido. Diziam-lhe que tinha mão para ele, que ninguém o fazia como ela, então repetia a receita, uma e outra vez, a pedidos. Fazia-o para os irmãos, para o namorado que depois foi marido, para a sogra, para os amigos. Fazia-o para ela própria. Depois fazia-o para a filha e nunca tinha gostado assim tanto de fazer o bolo como quando aquela mini-ela se sentava ali, a rapar a taça.
A filha, e uma vez que o tempo não tem misericórdia das Mães e nunca pára de passar, acabou por crescer e, quando já tinha idade para mexer no forno, ensinou-a a fazer o bolo. Tinha a mesma mão da Mãe, pelo que, depois de alguns acidentes devidas à pouca paciência de uma adolescente para untar a forma, o bolo começou a sair bem. Mesmo bem. Até chegou, uma vez em 2013, a sair absolutamente perfeito, igualzinho ao da figura da receita.
Desde que a filha aprendeu a fazer o bolo, que a Mãe só o faz em conjunto com ela e quando estão juntas. Em Maio de cada ano, a filha faz sempre dois bolos: um para os anos da Mãe, outro para os anos do marido. É que calhou por magia conspirativa do destino, e porque as coisas são mesmo assim, que o bolo também seja o preferido do marido da filha. Quando o faz, olhando para a receita só por hábito - como se a não soubesse de cor -, a filha/mulher coloca nele todo o amor que conhece e que é tanto, tanto, que fazer aquele bolo se revela, às vezes, até um bocado avassalador. Uma experiência nostálgica mas cheia de promessas para o futuro. Enche-lhe o coração ouvir da família que tem a mesma mão da Mãe para o bolo. Ela já não usa salazar, mas descobriu que uma colher de sopa faz praticamente o mesmo efeito, desde que utilizada com mestria. Depois de colocar o bolo no forno, deixando de propósito um bocadinho de massa a mais, ela senta-se à mesa, com a tijela e a colher nas mãos já não tão sapudas, e rapa a taça até já não sobrar nenhum risquinho da deliciosa massa de bolo. O bolo sabe-lhe à própria vida e ao passar do tempo, aos joelhos esfolados curados com beijinhos, à primeira vez que os seus olhos se cruzaram com os dele.

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